Pode a Literatura Fazer um Santo?

Em março de 2010, terminava assim o meu primeiro grande estudo sobre a literatura de José de Anchieta:

Anchieta sabia maravilhar-se com a beleza da terra, encantar-se com as pequenas coisas que aqui aprendia, vibrar pela conversão de uma única alma, lutar por suas convicções no limite máximo da fidelidade à Igreja, ler os sinais do tempo e traduzi-los aos outros, encontrar em tudo o dedo de Deus e a mão da Igreja. De canário em Coimbra, fez-se sacerdote. De padre voador – aberê – no Brasil, se fez poeta para traduzir a vida que aqui nascia. Quiçá um dia se fará santo.

Pouco tempo depois, em abril de 2014, o papa Francisco proclamava sua canonização. Claro está que sua obra literária não foi a única ou principal motivação para sua santidade, mas ainda hoje, diante do já São José de Anchieta, permaneço a perguntar-me sobre como ela teria contribuído para aquela constatação – tardia, mas justa, creio.

Escrita e fé: o sopro

Creio ser a obstinada fidelidade com que Anchieta desenvolveu seu trabalho a fonte de um engajamento que se revela nos múltiplos gêneros que escreveu. Chama a atenção a disciplina com que produziu sempre atento à intenção final, ao público destinatário e aos limites e possibilidades próprios de cada gênero com que trabalhou. Desta forma, utilizou as diversas línguas em que era versado, verteu canções profanas para sagradas, introduziu elementos alegóricos, levantou informações com diligência, enfim, aplicou todas as possibilidades literárias de sua época para realizar o trabalho que lhe cabia, seja como epistológrafo, dramaturgo, poeta, catequista ou sacerdote. Disciplina que o fez esquecer de si mesmo, para servir e obedecer, diluindo-se como um entre os demais de sua Ordem. Chamava-se a si mesmo de “o mínimo da Companhia”. Disciplina, fidelidade, humildade, qualidades que lhe abrem as portas da santidade, como ensina o jesuíta, Pe. Antonio Netto de Oliveira, no texto Perfeição e Santidade:

Trata-se [a santidade] de um esvaziar-se progressivo de toda autossuficiência e orgulho, de toda ambição de riquezas, de prestígio e projeção, de poder de dominação e de opressão, no seguimento do Filho de Deus (…)

Mas, para além da disciplina que lhe garantia o foco de seus objetivos, seus escritos revelam um autêntico jesuíta, forjado pela mão quase que direta de Inácio de Loyola. Por isso, foi possível descobrir em suas obras o emprego de elementos de cunho essencialmente inaciano, na tentativa de aplicar ao seu público a pedagogia que outrora convertera o Fundador e tantos outros homens que aderiram ao seu modo de pertencer à Igreja.

Inaciano incruado, como lhe chamou o professor baiano Jorge Araújo, Anchieta sabia bem de seu dom para a literatura e não escusou de colocá-lo a serviço da causa da Igreja e da Coroa. Creio que sua pena de poeta foi o sopro arrefecedor da brutalidade social em que viviam aqueles homens. O escritor e professor Roland Barthes, citado por Antoine Compagnon, disse uma vez: “A literatura não permite andar, mas permite respirar.” (in Literatura para quê?, de Antoine Compagnon, Ed.UFMG, 2009)

Da mesma forma que o desafio de descobrir-lhe o engajamento esteve na necessidade de uma compreensão deste conceito em uma perspectiva trans-histórica, creio que o mesmo desafio se configura na tentativa de provar-lhe a santidade, porém, em um sentido contrário, ou seja, se no primeiro foi necessário levar para trás no tempo toda a teoria que temos hoje, no segundo, é necessário trazer para frente o conceito de santidade para que se possa encontrar naquele homem do século XVI uma vida cujo exemplo preencha de sentido o homem contemporâneo.

Embora seja este um outro trabalho, acredito que algumas luzes podem ser lançadas.

As biografias e o processo de canonização de José de Anchieta dão conta de suas virtudes, profecias, milagres e mística. Tudo minuciosamente documentado e, possivelmente, já se encontram esgotadas novas fontes que possam vir a dar um novo rumo ao estudo biográfico do Beato. Os próprios títulos que recebeu da Igreja (Servo de Deus, Bem Aventurado, Beato e agora, Santo) mostram que ela mesma aceita a exemplaridade de sua vida. Torno a dizer, uma vida do século XVI, sobre a qual o olhar contemporâneo se revela muitas vezes como um crítico implacável, esquecendo-se da visão de mundo que aqueles homens teriam.

Anchieta foi descrito por muitos como um homem humilde, compassivo, dedicado ao serviço e ao próximo. Mas, é justamente uma crítica que lhe é feita que chama a minha atenção. Quando Anchieta já estava afastado do núcleo de governo da Companhia no Brasil, vivendo na aldeia de Reritiba no Espírito Santo, o Pe. Antônio Ferreira queixou-se ao então Pe. Geral, Claudio Acquaviva, que Anchieta seria condescendente para com os enfermos. Por que seria a condescendência um problema para a Companhia? Mais: ele não reclama da condescendência para com os outros, mas especificamente no trato com os enfermos. Ora, não precisariam estes de uma atenção mais detida? Não seria aquela uma atitude de caridade de Anchieta para com seu próximo? O Pe. José, doente que fora, sabia bem o que eram as horas intermináveis nos hospitais e a carência dos enfermos e não causa espanto que ele conseguisse ter para com aqueles uma atitude compassiva, em suma a mesma compaixão que sentia Jesus Cristo a mover-se pelos sofredores.

Retorno, então, ao sopro. Creio que Anchieta na sua afetividade, na empatia de suas relações com índios, colonos e irmãos, na sua atenção às necessidades e limites dos próximos e nos textos que produziu, foi essa brisa que caminhava entre os habitantes das vilas e das aldeias. Por isso, não foi em vão que o que lhe marcou a vida, dando-lhe o diferencial, foi justamente a literatura – outro sopro.

Anchieta, homem, sabia maravilhar-se com a beleza da nova terra e encantar-se com as pequenas coisas que aqui descobria e aprendia. Por isso, afeiçoou-se aos índios a ponto de, ao final de sua vida, preferi-los aos colonos. Anchieta, sacerdote, vibrava pela conversão de uma única alma e lutava por suas convicções no limite máximo da fidelidade ao voto que fizera junto à Igreja; místico lia os sinais do tempo e os traduzia aos outros, sob a forma de poemas, cartas, peças teatrais, sermões, indicando-lhes onde encontrar o dedo de Deus e a mão da Igreja.

A vida do apóstolo que caminhava descalço e a pé é exemplar não pelo que mostra de martírio ou de extraordinário; ao contrário, é exemplar pela fidelidade à escolha feita, pela negação de possibilidades pessoais para atendimento às coletivas, pela coerência de atitudes, pelo esvaziamento de si mesmo para encher-se do outro e de suas necessidades. No atendimento ao outro, Anchieta encontrou seu próprio sentido de vida. E o fez sem abrir mão daquilo que sempre foi: poeta, escritor, dramaturgo, um homem que poderia ter escolhido ficar em Coimbra e ganhar sua vida com esses dons, mas não o fez. Antes, colocou-os a serviço de outros e encontrou sua completude. Não seria este, portanto, um sinal que nos dá em dias em que o individualismo tem sido a tônica?

Ainda que inúmeros relatos extraordinários sobre sua vida nos cheguem em todos os livros escritos, creio que o que Anchieta nos deixa é a certeza de que a santidade não se descola da humanidade, mas são uma só no coração humano.

Gilda Maria Rocha de Carvalho
Mestre em Literatura Brasileira
Instituto Interdisciplinar de Leitura PUC-Rio