Espiritualidade para a Promoção da Saúde e do Bem-Estar

Saúde é uma questão de bem-estar físico, mental e social. A afirmação não está incorreta, mas incompleta. Desde o final os anos 70, a Organização Mundial de Saúde reconhece o bem-estar espiritual como uma dimensão importante para o equilíbrio do indivíduo. Nesta entrevista, a teóloga e enfermeira Cassia Tavares fala sobre Espiritualidade e Saúde e também como a medicina têm se voltado cada vez mais para essa relação. Ela explica, ainda, que Espiritualidade não necessariamente tem a ver com Religiosidade e que mesmo pessoas não-crentes têm uma dimensão espiritual.

De que forma o bem-estar espiritual se relaciona com a nossa saúde?
Cássia Tavares:
Sempre se falou sobre a saúde pensando a integração das dimensões da pessoa em todos os sentidos, a dimensão física, biológica, a dimensão psíquica, mental e o bem-estar também ligado ao social, ao coletivo. Posteriormente, a Organização Mundial da Saúde passou a agregar também a dimensão da Espiritualidade como um fator importante, não secundário, na vida do ser humano. Saúde é busca de bem-estar, equilíbrio e integração. É muito ligada a esse estar bem consigo mesmo, na relação com o outro, com a natureza e na relação com a transcendência ou Deus. E aí vai depender de como cada pessoa vai nominar essa dimensão que a gente vai chamar na Teologia de sobrenatural ou transcendental. Aqui o conceito de espiritualidade não está atrelado ao conceito de religiosidade e das crenças religiosas. Por quê? Porque todo ser humano é um ser espiritual. Ele pode ser ateu e ter a dimensão da sua espiritualidade. Essa é uma dimensão inerente, própria, existencial do ser humano. Se a pessoa tem uma crença religiosa, a religião se coloca como mediação dessa prática, e aí é cada um com a sua crença particular. Mas não significa que aqueles que não têm uma profissão de fé, uma crença, não tenham a dimensão da espiritualidade. Isso às vezes é muito mal compreendido, porque as pessoas estão culturalmente muito ligadas à questão da crença religiosa por formação. A gente tem que entender também que todo ser humano, independente da sua crença religiosa, é um ser espiritual. No momento em que ele transcende, em que ele consegue refletir sobre a sua própria existência e fazer projeções além dele mesmo, num sentido muito físico, muito daqui, não é pra depois não, é o aqui e agora, ele está vivendo a sua experiência de espiritualidade.

E por que a Organização Mundial da Saúde começou a perceber a importância da Espiritualidade?
Cássia:
A gente tem um conjunto de fatores, ciências e saberes que vão contribuindo. A questão de associar saúde e doença apenas ao dado biológico é bastante reducionista. Quando a OMS percebe que o elemento espiritualidade é uma dimensão da pessoa que também precisa ser valorizada, que não é secundária, ela está ouvindo as ciências humanas, as ciências sociais, inclusive as ciências da religião, e percebendo no contexto de práticas de saúde que essas práticas estão além da unidade hospitalar. Vamos encontrar pesquisas, com o pioneirismo americano, em institutos bastante conceituados, que indicam valorização da espiritualidade através de uma escuta do paciente, uma escuta da pessoa em processo terapêutico, uma percepção de seu estilo de vida, do que ele deseja para além do seu corpo físico, do corpo que está sofrendo, que está doente – até porque eu posso estar com uma certa doença e me sentir bem, estar emocionalmente bem, tranquilo, vivendo de maneira bastante equilibrada , não me sentir doente. Isso é um fator interessante. E aí a OMS passa a ouvir esses elementos e perceber no indivíduo que faz referência à sua crença, independente do credo religioso, mas a crença em algo que vai além dele, que o faz transcender e lhe traz sentido de vida, que isso o faz compreender que ele é mais do que a sua doença, mais do que naquele momento a sua dor. Isso aí vai repercutir de maneira muito saudável e positiva na recuperação da saúde, mental inclusive, das pessoas.

Como a dimensão da espiritualidade pode ser percebida em relação à saúde?
Cássia:
Eu posso estar sem nenhuma doença aparente, nenhum diagnóstico clínico, por exemplo, posso não ter hipertensão arterial, gastrite ou uma cardiopatia, estar aparentemente bem e estar vivendo uma profunda infelicidade, estar emocionalmente bastante adoecido. São coisas que a gente ouve: “Eu tenho tudo, tenho saúde, mas me sinto doente, sem energia, sem força…” O que falta na vida de uma pessoa assim? Por que neste século tão conturbado a gente tem visto tantas situações de depressão, de angústias, tantas enfermidades não explicadas? As pessoas estão adoecendo de maneira muito rápida. A juventude está muito adoecida. Por outro lado, a gente vê também sinais de superação importantes. Pessoas que às vezes estão com um diagnóstico bastante complicado, por exemplo, o diagnóstico de um câncer, às vezes sem tratamento, até num processo de cuidados paliativos e já sem uma possibilidade de cura, e ela está em paz, ela está vivendo naquele momento o que a gente vai chamar de ressignificação da vida e dos seus valores. Integrar isso na vida é uma dinâmica espiritual.

Então é possível manter todas essas dimensões equilibradas?
Cássia:
Se a gente conseguir levar a pessoa a organizar a vida, a pensar a vida de maneira que possa construir saúde ao invés de doença é muito melhor. Há formas de pensar a saúde e a espiritualidade antes mesmo da gente chegar ao processo de adoecer. Até na dimensão afetiva. O amor como remédio pra tudo. E amar num sentido bastante amplo também. Quais são os valores da minha vida? O que eu amo na minha vida? Eu estou presa onde? Eu estou presa a quê? Onde eu ponho maior peso? Essa reflexão é uma tarefa pra vida inteira. Em algum momento a gente precisa parar e começar esse processo, que é árduo, difícil, lento, varia de indivíduo para indivíduo, de grupo para grupo. Por isso o amor toca também na questão a espiritualidade, porque ele vai me levar a buscar maior sentido e perguntar coisas sobre a minha vida que eu talvez não tenha me perguntado.

No ambiente hospitalar, a interferência de grupos de apoio, religiosos ou não, desde os Doutores da Alegria até pessoas que vão lá rezar e conversar, isso interfere no tratamento?
Cássia:
Certamente. Os Doutores da Alegria, por exemplo, são voluntariados especiais. Eles não tratam a questão da religiosidade, mas tratam muito mais da dinâmica da alegria que toca na espiritualidade. Você libera essa pessoa para perceber outros sentidos, abrir-se a outras percepções, outras sensações até então sufocadas pela dor ou pela doença. Quando você desperta numa criança, numa mãe, num profissional de saúde um sorriso, uma alegria, sensações até então adormecidas, você está libertando essa pessoa, isso é muito saudável, é profundamente curativo, é terapêutico. O mesmo com os grupos de oração e apoio. Traz resultados? Traz. Porque qual é o apoio do voluntariado espiritual? É a escuta, e o que a gente vai chamar de uma escuta qualificada, estar ali, integrar-se àquela pessoa. Eu preciso manifestar a minha presença diante de um outro que deseja falar ou não falar num primeiro momento. Mas é a minha disponibilidade de coração, de abertura de espírito, sem preconceito, é uma escuta que não deve e não pode julgar. E através dessa escuta, de abrir os meus ouvidos, eu estou dando ao outro que fala a possibilidade de olhar a si mesmo e de se perceber. Então além da escuta é a presença, muitas vezes uma presença silenciosa, mas que diz “estou aqui e estou disponível pra você”. E ai a gente vê resultados fantásticos. As pesquisas mostram a redução do tempo de internação hospitalar; nas pessoas que não estão internadas, mas que precisam ir ao hospital para o tratamento todos os dias, a gente vê resultados de adesão terapêutica, a pessoa aceita melhor o seu tratamento e colabora mais com o seu tratamento; e resultados finais, que pode ser a cura física de fato ou mesmo uma preparação mais tranquila e mais organizada da própria morte. A Espiritualidade está muito presente também neste momento de aproximação da morte, de preparar a pessoa e sua família, o seu entorno, para estar de alguma forma em sintonia com aquele processo que é parte da vida.

E como é a relação dos médicos com essa questão da Espiritualidade?
Cássia:
Para o médico, de alguma forma, dobrar-se à essa dimensão, perceber que a sua terapêutica, a sua intervenção médica pode estar auxiliada por essa dimensão da espiritualidade é muito bom. Mas ainda não vemos isso em todas as especialidades médicas. Vou dar um exemplo, os homeopatas são muito mais abertos a essa reflexão, geriatras, clínicos, aqueles médicos que geralmente têm mais tempo para a escuta, o médico da família… são especialidades que têm de alguma forma privilegiado mais essa dimensão da espiritualidade, da escuta do paciente.

A gente pode dizer que a espiritualidade dá uma certa esperança que talvez ajude a pessoa no seu tratamento?
Cássia:
A pessoa vai descobrir essa esperança nela mesma, ao escutar-se, ao escutar a vida, a natureza, o outro, a aprender a escutar com todos os sentidos. A questão da respiração. A gente trabalha muito isso, respirar corretamente. Quando eu respiro, eu respiro o que? Vida? Tristeza? Morte? Quando eu expiro, eu boto o que para fora? As práticas de relaxamento ligadas ao processo de respiração. Uma série de práticas, o silêncio, a música, a contemplação, o pensamento. Quando a gente pensa todas essas técnicas, meditação, oração, contemplação, todas as formas e vamos olhar a medicina oriental em todos os seus recortes, bastante anteriores à medicina ocidental, e também as diversas espiritualidades cristãs e não-cristãs, a gente vai ver que tem sempre um eixo comum onde tudo se encontra, e esse eixo comum é o ser humano e a sua espiritualidade, que não é pertença de nenhuma religião ou de nenhum processo alternativo de busca de transcendência. Não. A espiritualidade é do indivíduo, é ontológica, é do ser, é minha, ninguém me tira isso. Agora uma dimensão não valorizada me deixa claudicante. Se o meu corpo físico sofre, eu vou mostrar isso em outras áreas da minha vida, se o meu ser espiritual fica abafado, isso vai ser refletir em outras áreas da minha vida, inclusive o biológico e isso pode desenvolver muitas doenças. São doenças da alma sim. Até para aqueles que são não-crentes. No momento em que ele deseja ser mais, que ele deseja superar suas dificuldades de viver, o sentido da sua vida, ele está privilegiando sua dimensão espiritual.

2 Comentários

  1. Agradeço o envio da entrevista com a teóloga e enfermeira Cássia Tavares. colocações de grande valia e reflexões. Grata

  2. Que bom que gostou, Tânia. Estamos vendo com ela a possibilidade de uma palestra ou curso sobre o tema aqui no Centro Loyola, no segundo semestre deste ano…