Diálogo Inter-Religioso: Desmistificando o Islã

Uma jovem cristã é violentada e morre com um crucifixo enterrado na garganta. A história circulou na internet como um ato praticado por muçulmanos, mas de acordo com o site E-farsas, no qual os autores dedicam-se a desvendar os boatos que povoam o mundo virtual, a cena chocante é do filme canadense Inner Depravity, de 2005. Mesmo falso, o boato foi compartilhado milhares de vezes e ajudou a denegrir ainda mais a imagem do Islã no mundo ocidental. Associada à violência e ao terror, a religião é cada vez mais alvo de discriminação por parte de quem não conhece os seus preceitos. Para desmistificar essa imagem e promover o diálogo inter-religioso, o Centro Loyola organizou, no dia 7 de março, uma palestra com Sami Armed Isbelle, Diretor do Departamento Educacional da Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro.

Logo no início do encontro, Isbelle explicou o que significa Islã e destacou a intenção de corrigir as distorções que nos chegam através da mídia. Segundo ele, o primeiro pilar do islamismo é a crença no Deus único, que não é um deus diferente daquele no qual creem os cristãos ou mesmo os judeus. Allah é a palavra em árabe que designa Deus, da mesma forma que God significa Deus em inglês.

– Os muçulmanos gostam de usar essa palavra em árabe porque ela tem nesta língua uma característica que a gente não encontra em nenhum outro idioma: não aceita gênero, nem número, nem grau. Se eu quiser me referir a deusa ou deuses em árabe, vou usar outras palavras. Allah é o Deus único. Nós acreditamos que ele é o único que sustenta e provem todo esse universo – destacou Isbelle, que explicou ainda sobre a crença dos muçulmanos nos anjos, nos profetas e mensageiros, no juízo final e no decreto divino.

Isbelle também destacou que Jesus Cristo pra os muçulmanos não era o filho de Deus, mas foi um grande profeta e mensageiro, que nasceu através de um milagre, através da Virgem Maria: “Para nós muçulmanos, a Virgem Maria é considerada a mulher mais pura que Deus criou”.

De acordo com Isbelle, a religião para os muçulmanos é um sistema de vida completo, que vai além da relação com Deus e se estende para as práticas diárias. Tudo o que um muçulmano faz que seja lícito é uma forma de adoração, e isso envolve gestos simples, como trabalhar e alimentar-se. A prática muçulmana inclui o testemunho da fé, a oração cinco vezes ao dia, o jejum no mês do Ramadan, a purificação e a peregrinação à Caaba, em Meca. Há ainda para eles a questão do Jihad, que a mídia tem associado às práticas terroristas, mas que, segundo Isbelle, seriam o empenho e esforço que todo muçulmano faz individualmente para agradar a Deus e afastar o que o desagrada (Jihad maior) e o esforço e empenho em relação a terceiros (Jihad menor).

– Toda vez que eu falo em Jihad, estou falando em empenho e esforço. Toda vez que vocês escutam falar em Jihad por aí falam em guerra santa. Essa é uma expressão que nunca foi mencionada nem no Alcorão, nem na Sunna do Profeta Mohammad, nem em nenhum livro de história islâmica. A palavra em árabe para guerra santa é outra. Essa expressão é completamente distante e alheia ao Islã. A tradução correta de Jihad é empenho e esforço – explicou Isbelle.

Isbelle reconheceu que dentro do Jihad menor existe a figura de combate, mas destacou que ela seria usada sempre em caráter defensivo, ou seja, se um muçulmano sofre uma agressão, ele teria o direito de defender-se. E ressaltou que, apesar disso, o Islã incentiva que se possa devolver uma agressão com uma boa ação, mas que nem sempre isso é possível. Ele citou casos como o de um país que invade o outro, no qual a população teria o direito de defender sua família e sua casa:

– Deus nos orienta a não iniciarmos qualquer tipo de agressão ou de hostilidade, nem violarmos os direitos das outras pessoas. Eu não posso de forma alguma iniciar um ato de violência e se fizer isso estou cometendo um pecado. O Jihad na forma de combate é somente para autodefesa e qualquer coisa contrária a isso vai contra os ensinamentos do Islã. “Combatei pela causa de Deus aqueles que vos combatem, porém não pratiqueis agressão, porque Deus não estima os agressores” (2:190).

Segundo o palestrante, o Islã antecipou, inclusive, pontos que foram tratados séculos depois na Convenção de Genebra. Entre os limites que um muçulmano deve respeitar, mesmo em uma guerra, estão: nunca matar pessoas inocentes que não estão em combate e não estão portando uma arma contra você; nunca torturar prisioneiros de guerra; nunca matar animais a não ser para se alimentar; não causar prejuízos e danos a mulheres, crianças e idosos; sempre enterrar os mortos com respeito, entre outros.

Sobre o terrorismo, Isbelle lembrou que diversos grupos de diferentes denominações já usaram a religião como justificativa para praticar o terror e citou casos como o da Ku Klux Klan que defendia a supremacia do protestantismo sobre o catolicismo e outras religiões e perseguia negros, judeus, muçulmanos e asiáticos; o atentado praticado em Oslo, em 2011, por Anders Behring, fundamentalista cristão de extrema direita; as ações do IRA na Irlanda, que promoveu um violento conflito entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte; e o ataque de budistas contra muçulmanos em Mianmar, entre outros. Para ele isso mostra que o terrorismo não tem religião e que é preciso separar as duas coisas.

Nas ações do grupo Estado Islâmico, por exemplo, Isbelle analisou que não existe apenas a questão religiosa envolvida, mas que há um contexto geopolítico por trás. Ele frisou ainda que muito do que o Estado Islâmico pratica vai diretamente contra os preceitos do Islã e que há muitos estrangeiros aderindo ao grupo. Para explicar, o palestrante usou uma história do profeta Mohammad, na qual ele encontra pessoas que tinham queimado um formigueiro e diz a elas: “ninguém pode castigar com fogo a não ser o senhor do fogo”:

– Ele está condenando terem queimado formigas em um formigueiro. Ele falou que é proibido queimar até um inseto, quem dirá um ser humano. Então um grupo desses que aparece na mídia queimando uma pessoa viva e fala que isso é o Islã e desconhece esse dito, que é extremamente conhecido, até crianças sabem que não podem queimar, torturar ninguém com fogo… Isso é uma proibição categórica dentro do Islã.

Para encerrar, Isbelle lembrou casos que mostram muçulmanos e pessoas de outras religiões convivendo em paz e até defendendo uns aos outros, como na época da revolução no Egito, em que cristãos e muçulmanos se uniram para derrubar o ditador; os muçulmanos que fizeram um cordão ao redor de uma sinagoga na Noruega para protegê-la depois de um atentado em outra sinagoga na Europa; e os cristãos que também fizeram um cerco para que um grupo de muçulmanos pudesse rezar:

– O muçulmano quando busca ser coerente com a realidade dele, e na verdade mesmo o cristão ou a pessoa de qualquer outra religião, sempre a base vai ser amor, paz e convivência. Se existe uma religião para pregar o ódio, a guerra, o terror, o mal, para mim não merece ser colocada como religião – finalizou.